O Brasil líquido e o mito da abundância: quando a água escorre mais rápido que a consciência. OPINIÃO 21/10/2025
- Ana Cunha-Busch
- 20 de out.
- 3 min de leitura
Atualizado: 21 de out.

O Brasil líquido e o mito da abundância: quando a água escorre mais rápido que a consciência
Por Claudia Andrade
O Brasil é um país líquido. Abundante em rios, em promessas e contradições. Um território que guarda 12% da água doce superficial do planeta, mas que ainda convive com torneiras secas, baldes improvisados e poços que viraram herança de sobrevivência. Há uma ironia dolorosa em ser potência hídrica e, ao mesmo tempo, vulnerável. Às vésperas da COP30, quando o mundo voltará os olhos para Belém, não consigo deixar de pensar que o Brasil chega a esse palco com a mesma dissonância que me atravessa quando volto do campo: um discurso bonito demais para a realidade que escorre entre os dedos.
Aprendemos a falar verde. Aprendemos a performar sustentabilidade em relatórios, campanhas e painéis corporativos. Mas ainda não aprendemos a agir verde. Tenho ouvido isso de executivos, de políticos e até de colegas de área — todos com a sensação de que o ESG se transformou numa espécie de “idioma de prestígio”, uma senha de pertencimento ao mundo moderno. E o problema é que, enquanto o verde ganha likes, o marrom continua tomando conta dos rios. A cada relatório de impacto, penso no que Ulrich Beck chamou de modernização reflexiva: quando reconhecemos o risco ambiental, mas apenas o gerimos como símbolo, e não como urgência.
Fala-se tanto em regeneração planetária, mas pouco em regeneração humana. A transição ecológica que o mundo celebra não tem sido justa — tem sido seletiva. E a economia verde, no Brasil, corre o risco de repetir o padrão da velha economia: concentrar oportunidades, excluir territórios e romantizar o que ainda é carência.
Não há justiça ambiental onde falta água. E a desigualdade hídrica é, talvez, a face mais cruel da desigualdade brasileira. Eu já vi mães ferverem água amarelada para preparar o leite do filho. Já ouvi crianças perguntando por que “a água boa é só da escola”. Já vi um poço virar motivo de festa. Essas cenas não saem de mim, porque mostram o quanto o discurso global ainda não toca o chão real. Como pensar em economia circular onde o básico ainda não circula? Como falar em ODS 6 quando a água potável ainda é artigo de luxo em tantos lugares? Bruno Latour dizia que “nunca fomos modernos”. Talvez nós, brasileiros, nunca tenhamos sido sustentáveis. Apenas sofisticamos a retórica da abundância enquanto mantemos a escassez como destino.
A água deveria estar no centro da economia, da política e da vida. Mas continua sendo tratada como um bem invisível, como se fosse eterna. O mundo já entendeu que o século XXI será definido pela geopolítica da água — energia, produção, segurança alimentar, sobrevivência. A ONU alerta que, até 2030, a demanda global vai superar em 40% a oferta. E o Brasil? Ainda desperdiça mais de 35% da água tratada antes que ela chegue às torneiras. Aqui, não falta água: falta visão. Falta prioridade. Falta coragem de dizer que desenvolvimento sem saneamento é só discurso bonito com sede de aplauso.
Nos grandes eventos, percebo o mesmo roteiro: “sustentabilidade” se repete em cada fala, mas esvaziada de sentido. “Transição justa”, “governança”, “net zero”. Palavras que soam bem, mas que, fora das salas climatizadas, não movem uma bomba d’água sequer. O risco é acharmos que estamos salvando o planeta enquanto apenas polimos a imagem. Não basta inovação se ela não regenera a relação entre pessoas e natureza.
Ignacy Sachs dizia que “não há desenvolvimento sustentável sem desenvolvimento social”. E é isso que me atravessa cada vez que volto do sertão: o social ainda é o rodapé do discurso climático. Fala-se de carbono, mas pouco de crianças que bebem água contaminada. Fala-se de eficiência energética, mas não se mede a eficiência da empatia. A água, no Brasil, ainda é um espelho do que somos: potentes, mas negligentes.
E é por isso que, às vezes, acho que o futuro não depende apenas de novos acordos, metas ou fundos climáticos. Depende da capacidade que temos de reencantar o essencial.
Porque, no fim, o que o mundo chama de recurso, eu continuo chamando de vida.
E a vida, quando escorre por entre os dedos, leva junto a chance de transformarmos abundância em legado.
#ODS 6





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